Texto de Especialista - “Trabalho Infantil: uma alternativa perversa de emancipação e socialização laboral” - José Enrique Fernández
O trabalho infantil é conceitualizado como uma situação que implica em um processo de emancipação precária e incompleta, a ruptura de um processo de socialização de caráter universalista e um processo de falsa socialização laboral. São discutidas as consequências que esses processos produzem nos níveis do indivíduo, da família e da sociedade em um âmbito geral e em um contexto específico de país de renda média. Leia e participe da discussão sobre essa temática no Fórum.
A partir da nossa perspectiva teórica, sem sair do marco das definições geralmente aceitas, sustentamos que as situações de trabalho infantil fazem parte de um processo que combina três elementos-chave: a) um processo de emancipação precoce e incompleta, b) a ruptura de um processo de socialização de caráter universalista e c) um processo de “falsa” socialização laboral.
É um processo de emancipação precária e incompletaporque a criança ou o adolescente assumem papéis adultos de forma parcial, em uma idade na qual não possuem desenvolvimento físico, psicológico e cognitivo que lhes permita conduzir-se no mercado laboral de forma a assumir um papel adulto completo. A criança ou o adolescente, a partir de sua inserção em situações de trabalho infantil, começam a administrar dinheiro próprio e a ter relações sociais com adultos fora do núcleo familiar, tomam decisões sobre sua vida, e conhecem e fazem parte de redes de adultos que são desconhecidas para sua família. De fato, deixam de ser uma criança ou um adolescente (se distanciam significativamente do comportamento médio para sua idade), mas não chegam a ser adultos. Não podem gerir sua sobrevivência de forma independente de um núcleo adulto de referência e não estão legalmente habilitados a fazê-lo.
É um processo que substitui a socialização universalistaque se dá através do ensino fundamental e eventualmente continua no ensino médio. No caso do Uruguai, com 97% de matrícula no ensino fundamental, a maioria das crianças está socializada em função de valores universalistas e uma concepção curricular relativamente homogênea. A ruptura desse processo gera (sobretudo quando ocorre em idade tenra) um novo tipo de criança, que começa a se socializar em valores ligados às relações entre adultos, e, em muitos casos, às regras de convivência na rua, emergindo uma forma de vida infantil alternativa, vinculada à condução, sem supervisão, dos tempos pessoais, do dinheiro e dos vínculos interpessoais, tudo isso somado ao atraso nos estudos e fracasso na escola.
É um processo de falsa socialização laboralporque a criança que se socializa no trabalho infantil não está aprendendo a ser um trabalhador formal, com qualificações adequadas, direitos e dignidade. O aprendizado básico que emerge desse processo é uma estratégia adaptativa que leva à aceitação de um sistema de exploração brutal, desgaste corporal (físico e psicológico), subordinação e ausência total de direitos. Ao levarmos em conta as formas de trabalho infantil predominantes no Uruguai, vemos que os aprendizados possíveis nas práticas correntes não geram, em quase nenhum caso, qualificações que permitam uma inserção no mercado de trabalho formal ao se atingir a idade em que se está autorizado a fazê-lo.
A análise das situações de trabalho infantil como um processo que tem como elementos centrais esses três aspectos já discutidos permite determinar três “gargalos” enfrentados por quem pretenda desenvolver políticas de prevenção e erradicação (pelo menos no Uruguai):
1. O processo de emancipação incompleta e precária é difícil de reverter, e os processos de ressocialização exigem esforços metodológicos e econômicos que, em geral, nossas sociedades não conseguem implementar;
2. A consolidação do processo provoca um fenômeno de “desfiliação institucional”, já que a criança ou o adolescente rompem em parte os vínculos normais com sua família, abandonam as instituições de ensino e não conseguem se inserir no trabalho formal. Essa situação causa um bloqueio das oportunidades de acumular capital social e humano em uma etapa crucial para a consolidação dos ativos com os quais enfrentarão os desafios da conquista do bem-estar em sua vida adulta. Isso gera um conjunto significativo de adolescentes e jovens que não estudam e não trabalham, apresentando graves situações de exclusão social, econômica e cultural.
3. O trabalho infantil não beneficia as crianças e adolescentes, que chegam à maioridade com uma “empregabilidade” baixa, engrossando as filas do desemprego estrutural, e prejudica claramente o país, na medida em que não é funcional em nenhum aspecto para a estrutura produtiva atual e projetada para o futuro. Os únicos beneficiários são alguns empresários marginais à estrutura produtiva e um conjunto de famílias que poderiam equacionar sua sobrevivência através do sistema de proteção social existente, com algumas adaptações.
Os elementos mencionados anteriormente comprometem a reprodução biológica e social das crianças e adolescentes envolvidos em processos de trabalho infantil e geram problemas estruturais nas sociedades. Partimos de uma base em que a família e os indivíduos necessitam e possuem “ativos”, elementos que podem capitalizar para equacionar sua sobrevivência e seu bem-estar individual e familiar. Quando menores de idade, os ativos familiares têm mais peso e os individuais, menos. Esses ativos combinam o capital social (as redes sociais pessoais e familiares), o capital físico (infraestrutura, renda, ferramentas) e o capital humano (ligado à aquisição de valores e à educação).
A maioria das sociedades, independentemente do nível de desigualdade que tenham em seu interior, tem um Estado que é provedor de oportunidades para as famílias (infraestrutura, segurança, saúde, educação, sistema de proteção social), um Mercado ao qual as famílias recorrem para oportunidades para sobreviver e se reproduzir (renda proveniente de salários ou outras transações) e a própria Comunidade, a comunidade como organização solidária (movimentos sociais, ONGs, apoio individual de vizinhos).
Esses três componentes, Estado, Mercado e Comunidade, formam a estrutura de oportunidades que cada país e cada comunidade oferecem a seus habitantes. A configuração que essa estrutura assume é diferente, em termos gerais, entre os países, já que é extremamente sensível às políticas sociais e econômicas que são implementadas e ao grau de desenvolvimento social e produtivo. Por outro lado, também é sensível às diferenças entre as comunidades dentro dos países. As desigualdades na distribuição do bem-estar e do risco em nível territorial geram estruturas de oportunidades diferentes conforme o lugar de residência. Por fim, as capacidades familiares de acesso à estrutura de oportunidades estão relacionadas à posição da família na estrutura de estratificação social.
Em um país de renda média, como o Uruguai, podemos identificar uma trajetória normal na vinculação dos diferentes arranjos familiares com a estrutura de oportunidades. Na primeira infância, a família é essencial para transferir à criança os ativos que possa captar na estrutura de oportunidades. O Estado e a Comunidade intervêm, mas, em geral, isso é mediado pela família. Na infância, o Estado e a Comunidade operam diretamente sobre a criança e a família, sobretudo por meio do sistema de ensino e de alguns projetos comunitários. Nessa situação, a criança já não depende apenas da família para ter acesso à estrutura de oportunidades, mas pode fazê-lo individualmente por meio, sobretudo, do sistema de ensino formal e informal. Na adolescência a mesma situação permanece, com a diferença de que se pode ter acesso ao mercado diretamente, através do trabalho adolescente legal, sem comprometer o desempenho escolar. Por fim, na juventude ocorre o processo de emancipação, no qual o jovem se relaciona com sua família, com o estado e com o mercado de maneira independente. As situações de trabalho infantil interrompem o processo mencionado anteriormente, gerando uma relação direta das crianças e adolescentes com o Mercado em idades tenras. A capacitação de ativos que uma criança pode fazer por essa via não é compensada pelos passivos que acumula ao perder parte das oportunidades que o estado lhe dá (educação e recreação).
O trabalho infantil e adolescente que implica maior risco e dano surge de um conjunto de condições concretas do contexto (pobreza, indigência) e da família (exclusão, desfiliação institucional, entre outros) e, por sua vez, reproduz um conjunto de condições que facilitam a reprodução intergeracional da exclusão e da pobreza, por exemplo, a exposição precoce e inadequada de crianças e adolescentes a papéis adultos, especialmente a entrada nos mercados de trabalho formal e informal e a maternidade e paternidade adolescente. O efeito acumulado das situações de risco vividas na primeira infância se traduz em baixo rendimento acadêmico no ensino fundamental e em maiores probabilidades de abandono e atraso ou defasagem. Riscos semelhantes emergem no ensino médio, onde se começa a observar uma evasão significativa entre os adolescentes, que tendem a não prosseguir seus estudos e a se inserir de maneira demasiadamente precoce e precária no mercado de trabalho.
Por fim, entendemos que uma estratégia de desenvolvimento social e produtivo não pode passar ao largo da consideração do trabalho infantil como problema. No Uruguai, durante o governo anterior, partiu-se de um marco de crise econômica e recessão com altos índices de desemprego e chegou-se a uma situação de crescimento sustentado, com redução significativa do desemprego, que atingiu valores mínimos históricos. A geração de 150.000 postos de trabalho nesse período não estava presente nos cálculos mais otimistas e gerou um impacto socioeconômico substancial. Por outro lado, a taxa de desemprego alcançou o mínimo histórico de 7,6% em abril de 2008, o que ressalta o tema do desemprego estrutural vinculado à população com índice de vulnerabilidade mais alto, pertencente a lares com baixíssimo capital físico, social, educacional e humano. Grande parte desses indivíduos desocupados fez parte de processos como os discutidos neste artigo.
Os governos anterior e atual de esquerda estabeleceram como objetivo o desenvolvimento do Uruguai Produtivo. As previsões feitas para 2030 indicam que este país pode chegar a níveis de desenvolvimento e bem-estar comparáveis aos de alguns países menores da União Europeia. Um dos gargalos que se apresentam para a concretização desse cenário possível é a necessidade de formar recursos humanos com alto nível de qualificação para as indústrias emergentes. A tendência indica que o trabalho de baixa qualificação será reduzido ao mínimo.
Neste cenário, é importante assegurar o processo de socialização em todas as suas etapas, já que a única forma de aderir ao projeto de país que fomentamos em conjunto é capacitar-se para a produção e integrar-se socialmente.
Dia 01/09/2010, 12 dias atrás, até 31/10/2010 - Participar
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